24 de novembro de 2024
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Economia

Equiparação salarial: especialistas explicam o que muda com a nova legislação

Empregador que descumprir a lei deverá pagar o equivalente a dez vezes o valor do novo salário devido

Anunciado pelo Governo Federal no Dia internacional da Mulher, 8 de março, o Projeto de Lei (PL) 1085/23, que obriga a equiparação remuneratória entre homens e mulheres, foi aprovado no Senado Federal, em votação na última quinta-feira (1º). Anteriormente aprovado na Câmara, agora, a matéria segue para a sanção presidencial.

O projeto prevê novos parâmetros de fiscalização de pagamento das empresas e, em caso de descumprimento da igualdade de pagamentos, é estipulado um valor de multa superior ao que já é indicado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Para entender melhor as mudanças propostas pela lei, o Portal TVBV conversou com a advogada trabalhista e professora de direito, Susan Zilli, e com a Doutora em Economia, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos de Santa Catarina (Dieese-SC), Cristina Vieceli. Confira abaixo o detalhamento das alterações.

 

Salário X Remuneração

De acordo com Susan Zilli, essa igualdade salarial já é prevista, tanto pela CLT quanto pela Constituição Federal, as quais coíbem a diferença de salários por motivo discriminatório de sexo, etnia, nacionalidade ou idade. Porém, a nova lei propõe que a equiparação seja não apenas salarial mas também remuneratória, o que englobaria, por exemplo, valores pagos por fora do salário formal.

“Se comprovada a discriminação, as diferenças a serem pagas não serão só aquelas decorrentes somente do salário, mas sim do conjunto da remuneração, caso fique demonstrado que o empregador utiliza artimanhas, pagando para um grupo de homens que está no mesmo exercício da função de outras mulheres verbas que, no somatório final, representam valores maiores.

Por exemplo: o salário base de uma função é igual para homens e mulheres. No entanto, o grupo de homens recebe determinadas verbas que não são aquelas pagas para mulheres na função. Então, esse somatório do salário base mais as verbas por fora é o que a gente chama de remuneração” — Susan Zilli

Embora a equiparação passe a englobar mais do que somente o salário, estendendo-se ao que se compreende por remuneração, o projeto ressalva bonificações por desempenho. Ou seja, está prevista a equiparação das remunerações somadas, mas ficam de fora dessa conta os prêmios, gorjetas ou bônus recebidos pontualmente pelo trabalhador ou pela trabalhadora em decorrência de um bom desempenho profissional.

Transparência

A advogada também chama a atenção para os métodos de comprovação da discriminação, que são aprimorados pela nova legislação. “Alguém poderia dizer que a constituição e a CLT já vedam esse tipo de prática discriminatória. No entanto, esse projeto de lei cria algumas facilidades: por exemplo, a prova. Porque a prova da discriminação na justiça do trabalho é difícil de fazer, para demonstrar que a diferença salarial seja decorrente de discriminação de gênero”, declara Susan Zilli.

O principal mecanismo previsto trata da publicação semestral de um relatório de transparência salarial, que deverá ser apresentado por empresas que tenham 100 ou mais empregados. O documento prevê que a publicação das informações permita a comparação entre salários e critérios remuneratórios e que também indique a proporção de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens. 

Cabe ainda regulamentar especificamente os protocolos de fiscalização desse relatório, mas Susan destaca a garantia de uma maior objetividade. “Argumentos como ‘pago mais para determinado grupo de homens na mesma função pois o trabalho de mulheres na mesma função não é de igual valor’ não são aceitáveis no relatório” ressalta.

Multa

Duas possibilidades de multas são descritas pelo projeto. Caso o relatório não seja apresentado, o PL 1085/2023 prevê multa às empresas, com valor equivalente a até 3% da folha de salários e limitado a cem salários mínimos.

Outra sanção é referente ao descumprimento da equiparação remuneratória: se comprovada a desigualdade, a multa ao empregador é equivalente a dez vezes o valor do salário devido. Em caso de reincidência, o valor da multa dobra.

Atualmente, a multa prevista pela CLT equivale a um salário-mínimo regional, que também é elevada ao dobro no caso de reincidência.

Desigualdade

A justificativa do projeto, submetido pelos ministros Luiz Marinho, do Ministério do Trabalho e Emprego, e Aparecida Gonçalves, do Ministério das Mulheres, cita um “processo de reconstrução e transformação do Brasil”, e indica o combate “à opressão sobre as mulheres, bem como a todas as formas de discriminação social que se refletem em desigualdades históricas”.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 indicam que uma mulher ganha, em média, 78% dos rendimentos de um homem, no Brasil. No caso de mulheres pretas ou pardas, o percentual cai drasticamente, para menos da metade (46%), quando comparado aos salários de homens brancos.

“Em Santa Catarina, o rendimento médio por hora entre as mulheres é de 14,82 reais e entre os homens é 17,54. Entre mulheres negras e homens negros, ainda é maior a diferença, então existe a questão racial” aponta a economista do Dieese de Santa Catarina, Dra. Cristina Vieceli.

“Nessa luta, o movimento feminista negro contribuiu de forma bastante importante ao demonstrar que, no ambiente de trabalho, as trabalhadores negras tinham seus salários ainda mais rebaixados do que as mulheres brancas. E, ao trazer essa discussão para o movimento de mulheres, fez com que esse debate tivesse maior profundidade e ganhasse maior transparência e pluralidade”, afirma a advogada Susan Zilli. 

A economista Cristina Vieceli comemora a nova legislação, considerando estar “dentro do que as mulheres vêm construindo internacionalmente” e explica que a desigualdade salarial de gênero não é exclusividade brasileira, atingindo praticamente todos os países. “Mesmo aqueles que são mais desenvolvidos, ou que têm um sistema de seguridade social mais ampliado, possuem algum tipo de desigualdade salarial de gênero, ainda que nos países nórdicos a discriminação seja muito pequena”, relata.

Segundo Cristina, a disparidade é relacionada a estruturas sociais que colocam as mulheres em funções de “cuidadoras”, de forma com que seus trabalhos sejam menos valorizados do que os trabalhos realizados por homens. As mulheres recebem em torno de 20% a menos do que o salário dos homens. Essa diferença foi se reduzindo ao longo do tempo mas muito mais em função da redução salarial dos trabalhadores homens do que de fato a um aumento do salário das mulheres”, lamenta a economista.

Oportunidades no mercado

Para além da equiparação salarial, outro fator apontado por Cristina diz respeito ao acesso feminino ao mercado de trabalho. Ela aponta que Santa Catarina apresenta números de participação laboral superiores aos indicadores nacionais, mas a discrepância de gênero ainda supera 16 pontos percentuais. “A taxa de participação das mulheres é de 60% mas ainda bastante inferior a dos homens, de 76,5%. Isso a lei não modifica e é uma questão que deve ser trabalhada”, explica a doutora em Economia. 

“A gente pode dizer que 40% das mulheres em idade ativa não estão no mercado de trabalho e isso pode ocorrer também devido questão da falta de oportunidades iguais para essas mulheres ingressarem, no sentido de que muitas mulheres são sobrecarregadas com trabalhos domésticos. Outra questão é por parte do empregador, que enxerga as mulheres como um custo maior em função da questão da maternidade e em função do cuidado com a família e com pessoas idosas”, argumenta a economista Cristina Vieceli.

Parentalidade

A respeito do custo que as empresas têm com trabalhadores homens e mulheres, Cristina critica as sustentações legais das funções familiares atribuídas por gênero, o que, em sua visão, acabam por sobrecarregar ainda mais as mulheres.

“O custo das mulheres tem que ser igual ao custo dos homens e isso se dá através de políticas voltadas para licença parental, voltadas para maior igualdade de cuidados entre homens e mulheres, coisa que a gente não tem no Brasil. No Brasil a gente tem 5 dias de licença paternidade, podendo se estender para 20 dias, e 4 meses de licença maternidade, podendo se estender para 6 meses”, afirma.

Escolaridade

Outra questão levantada pela economista trata dos diferentes salários pagos a trabalhos que não exigem alto grau de escolaridade e que são tradicionalmente ocupados em maioria por homens, no caso de alguns serviços, e outros por mulheres. De acordo com Cristina, esse contraste ocorre em função de uma lacuna deixada pela legislação atual, a qual deveria ser reformada.

“Muitos serviços ofertados pelas mulheres tem uma remuneração menor, em função de uma menor valorização do mercado e são questões que a lei não vai incidir. Se for comparar trabalhos com menor nível de escolaridade, como trabalho doméstico e construção civil, construção recebe salários maiores do que trabalhos domésticos. E isso a lei não pega. Deve existir uma mudança profunda nas regras e na forma como são ofertadas esses trabalho para homens e mulheres em toda a sociedade brasileira” — Cristina Vieceli.

Fotos: Reprodução – Jefferson Rudy / Agência Senado